“Andamos em cima dos cadáveres para, imagine, retirar distintivos dos corpos. Hoje eu teria nojo, mas naquele tempo as crianças pisavam nos mortos para pegar e colecionar distintivos. Não entra na minha cabeça como eu pude fazer uma coisa dessas. Muitos faziam isso”.
Quando se tornou sacerdote na juventude, Georg Karl Brodka recebeu o nome Jerônimo Foto: Acervo: Ordem do Carmo
O alemão Georg Karl Brodka, mais conhecido como Frei Jerônimo, se mudou para Paranavaí na juventude, e poucos sabem da sua história antes de se comprometer com o sacerdócio.
Ele testemunhou a Segunda Guerra Mundial na infância e também sofreu no pós-guerra nas mãos dos tchecoslovacos – simplesmente por ser alemão.
A sua insigne trajetória começou em Neisse, onde nasceu em 31 de dezembro de 1935, ano em que Adolf Hitler apresentou as Leis de Nuremberg ao Reichstag, legalizando suas equivocadas teorias raciais que respaldavam a ideologia nazista.
À época, fazia três anos que seu pai tinha ingressado no Exército alemão porque não havia emprego no país, a não ser na Wehrmacht, as forças armadas.
“Ele casou em 1934 e nasci em 1935. Eram tempos difíceis. Sim, ganhava bem, tinha caderneta de poupança, mas não havia comida para comprar. Por causa da subnutrição durante a Segunda Guerra Mundial, tive problemas de desenvolvimento ósseo. Inclusive quem nasceu entre 1934 e 1937 foi dispensado do serviço militar na Alemanha”, conta.
Frei Jerônimo perdeu as contas de quantas vezes o alarme ressoou e tiveram de correr até o porão, onde costumavam guardar alguns alimentos. Um dia, uma forte investida dos aliados, resultou na destruição de quatro quartéis.
“Andamos em cima dos cadáveres para, imagine, retirar distintivos dos corpos. Hoje eu teria nojo, mas naquele tempo as crianças pisavam nos mortos para pegar e colecionar distintivos. Não entra na minha cabeça como eu pude fazer uma coisa dessas. Muitos faziam isso”, narra.
Embora seu pai fosse um oficial do Exército alemão, era muito difícil encontrar alimentos em 1944. “Aquele medo e fome, você nunca passou fome quando criança, né? E vendo a mãe chorando e sabendo que não tem comida. Isso foi pesado”, relata emocionado.
Quando a situação piorou, a família encontrou refúgio em uma paróquia: “Mas o medo do bombardeio nunca desaparecia, porque os aviões atacavam de dia e de noite. Não havia energia elétrica, e tinha semana que a gente dormia no escuro, no porão.”
Em 1945, quando os soviéticos entraram em Neisse por terra, a família Brodka conseguiu deixar a cidade. Foram levados até a fronteira com a Tchecoslováquia.
Em Marienbad, Georg Karl encontrou um soldado alemão e falou que seu pai tinha uma insígnia igual a dele. O homem perguntou quem era seu pai. Quando o menino respondeu, ele explicou que aquele oficial era o seu superior.
“Ele conversou com minha mãe e ela começou a chorar. Duas ou três horas depois, meu pai se apresentou. Quando os americanos saíram da Tchecoslováquia, perdemos o apartamento que meu pai conseguiu para nós, e fomos enviados para o campo de refugiados de Flaschenhütte”, enfatiza.
Um dia, os soldados tchecoslovacos permitiram que a família Brodka percorresse a floresta para procurar frutas. Colheram folhas de agrião perto de uma mina de água: “Enchemos os bolsos e levamos para o campo. De manhã, quando ganhamos uma fatia de pão seco, colocamos o agrião e comemos. O gosto era muito bom, porque o agrião vem temperado da natureza. Mais tarde, quando começaram a derrubar árvores, peguei as cascas para fazer brinquedos”.
O alemão jamais esqueceu do episódio em que soldados tchecoslovacos amarraram sua mãe com cordas em cima de um jipe e percorreram a cidade, expondo-a para quem quisesse ver. Em Marienbad, também quebraram os dentes do seu pai com um cassetete.
“As crianças [alemãs] tinham que sair com faixa amarela no braço para pedir comida, e sabe que comida eles ofereciam para nós? A borra de café. Davam risada quando nossa boca ficava suja, e faziam isso de brincadeira, para nos chatear”, revela.
Os tchecoslovacos não gostavam de alemães porque as tropas do exército de Adolf Hitler invadiram e ocuparam o país em 15 de março de 1939, acabando com a soberania da Tchecoslováquia.
Em 1950, Karl Brodka articulou a fuga de Georg e, para não levantar suspeitas, o declarou como fugitivo. “Eu tinha 14 anos. Para um pai fazer isso, tinha que ter muita confiança no filho. Fui até a fronteira de trem e percorri uma floresta. Acabei sendo detido”, pontua.
A polícia da fronteira levou Brodka até um pequeno quartel, onde ele recebeu um bom jantar e passou a noite em um quarto com beliche. Na manhã seguinte, dois policiais o levaram de volta à ferroviária e o colocaram em um trem de retorno à Alemanha Oriental. Assim que o trem começou a se mover, Georg Karl saltou sobre o vagão de um trem que transportava gado.
Quando o trem parou, passou seus dedos pelas fendas onde o gado estava preso. Bem perto tinha um policial uniformizado. Ele levou um susto: ‘O que você está fazendo aqui?’, perguntou: “Eu disse que iria para Bamberg. Me levou para tomar café da manhã e me arrumou uma carona de caminhão. Foram mais ou menos 350 quilômetros”.
Durante a guerra, Georg Karl perdeu um padrinho de batismo, que foi morto na União Soviética. E ao final da guerra, um de seus tios foi enforcado na Polônia porque era religioso e andava com uma Bíblia.
O pai de Brodka visitou Neisse quando passou a pertencer à Polônia, e nunca mais retornou porque foram muito mal recebidos pelos poloneses.
“Uma vez participamos de um encontro de antigos militares, tinha 15 homens mais ou menos. Meu pai chorou ao dizer que jamais matou ou ordenou que alguém matasse um soldado na guerra. Outro colega falou a mesma coisa. Se ele tivesse falado isso durante a guerra, teria sido punido com pena de morte, até porque era mais fácil matar do que não matar”, assegura.
Fonte: Diário do Noroeste